quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Enclausurado

 "Aqui onde me encontro confinado tornei-me um bom conhecedor dos sonhos coletivos. Quem sabe o que é real? Não tenho condições de reunir eu mesmo as provas. Cada proposição é contestada ou anulada por alguma outra. Como todas as pessoas, vou escolher o que eu quero, o que for melhor pra mim."

Enclausurado, Ian McEwan.

O livro "Enclausurado" de Ian McEwan conta a história de um bebê que do útero toma conhecimento do mundo e reflete sobre a realidade que o espera (ou não, porque sua mãe planeja um aborto). A seguir um brilhante trecho dessa reflexão:

"O pessimismo é fácil demais, até mesmo delicioso, o emblema e enfeite dos intelectuais em toda parte. Exime as classes pensantes de buscar soluções. Nos excitamos com pensamentos sombrios em peças teatrais, poemas, romances e filmes. E agora nas análises de especialistas. Por que confiar nesse relato, quando a humanidade nunca foi tão rica, tão saudável, tão longeva? Quando mais do que nunca há menos mortes em guerras e em partos, quando mais do que nunca a ciência disponibiliza a todos mais conhecimento e mais verdade? Quando a cada dia se vê mais simpatia e carinho por crianças, animais, religiões alternativas, estrangeiros desconhecidos e distantes? Quando centenas de milhões de seres humanos foram retirados da subsistência miserável? Quando no Ocidente até mesmo os moderadamente pobres, envoltos em música, se reclinam em bancos ao deslizarem por estradas macias a uma velocidade quatro vezes maior que a de um cavalo a galope? Quando a varíola, a poliomielite, a cólera, o sarampo, as altas taxas de mortalidade infantil, o analfabetismo, as execuções públicas e a tortura rotineira praticada pelo Estado foram banidos de tantos países? Não faz muito tempo essas pragas estavam por toda parte. Quando os painéis solares, as usinas eólicas, a energia nuclear e invenções ainda desconhecidas nos livrarão dos males do dióxido de carbono, e culturas geneticamente modificadas nos salvarão dos desastres causados por fertilizantes químicos e impedirão que os mais pobres morram de fome? Quando a migração para as cidades devolverá grandes extensões de terra a seu estado virgem, reduzirá o crescimento demográfico e libertará as mulheres de patriarcas ignorantes do interior? Que dizer dos milagres cotidianos que fariam o imperador César Augusto invejar um trabalhador braçal: tratamento dentário sem dor, luz elétrica, contato instantâneo com as pessoas que amamos, com a melhor música que o mundo conheceu, com a gastronomia de dezenas de culturas? Estamos cercados de privilégios e delícias, assim como de queixas, e os que ainda não desfrutam de tudo isso em breve desfrutarão. Quanto aos russos, o mesmo se disse da Espanha dos Reis Católicos. Esperamos os exércitos deles em nossas praias. Como a maioria das coisas, isso não aconteceu. A questão foi resolvida por alguns navios incendiários e por uma providencial tempestade que empurrou a esquadra deles para a ponta da Escócia. Sempre vamos nos preocupar com o estado das coisas — é a contrapartida do espinhoso dom da consciência."

"Através dos ossos de minha mãe dei com um pesadelo sob a forma de uma palestra formal. A situação do mundo. Uma especialista em relações internacionais, uma mulher sensata de voz grave, me informou que o mundo não vai bem. Analisou dois estados de espírito comuns: a autocomiseração e a agressividade. Cada qual uma escolha ruim para qualquer indivíduo. Combinadas, para grupos ou nações, uma mistura letal que ultimamente envenenou os russos na Ucrânia, como já havia acontecido com seus amigos, os sérvios, na parte deles do planeta. Fomos humilhados, então vamos provar quem somos. Agora que o Estado russo é o braço político do crime organizado, outra guerra na Europa está longe de ser inconcebível. Basta tirar o pó das divisões de blindados na fronteira sul da Lituânia, de onde podem alcançar as planícies ao norte da Alemanha. O mesmo veneno corrói os segmentos extremados do islamismo. A taça foi bebida até o fim, o mesmo brado se levanta: fomos humilhados, vamos nos vingar.
A palestrante mostrou uma visão sombria de nossa espécie, em que os psicopatas constituem uma fração permanente, uma constante humana. A luta armada, justa ou não, os atrai. Eles ajudam a transformar desavenças locais em conflitos mais amplos. Segundo ela, a Europa, em meio a uma crise
existencial, está irascível e fragilizada porque muitas variedades de nacionalismo autoindulgente estão provando dessa mesma poção saborosa. A confusão sobre valores, a incubação do bacilo do antissemitismo, os contingentes de imigrantes apodrecendo por falta do que fazer, enfurecidos e entediados. Em outros lugares, em toda parte, novas desigualdades de riqueza, os super-ricos uma raça de donos do mundo à parte. A engenhosidade demonstrada pelas nações para desenvolver armamentos novos e brilhantes, das corporações multinacionais para evitar impostos, dos bancos que se dizem honestos para se entupir de dinheiro. A China, grande demais para precisar de amigos ou de conselhos, testando cinicamente o litoral de seus vizinhos, construindo ilhas de areia tropical, preparando-se para a guerra que sabe vir por aí. Os países com maioria de muçulmanos sofrendo os males do puritanismo religioso, da repressão sexual, da imaginação sufocada. O Oriente Médio capaz de gerar uma guerra mundial. E o inimigo conveniente que são os Estados Unidos, mal e mal ainda a esperança do mundo, culpados de praticar torturas, impotentes diante de um texto sagrado concebido numa era em que se usavam perucas com pó branco, uma constituição tão impossível de ser questionada quanto o Alcorão. Sua população está nervosa, obesa, com medo, atormentada por uma raiva que não consegue exprimir, desprezando o governo, assassinando o sono com novas armas de mão. A África ainda não descobriu o truque da democracia — a transferência pacífica do poder. Seus filhos morrendo, milhares a cada semana, por falta de coisas simples — água limpa, mosquiteiros, remédios baratos. Unindo e nivelando toda a humanidade, os velhos e tediosos fatos da mudança climática, do desaparecimento das florestas, das criaturas e das calotas polares. A agricultura rentável e perniciosa destruindo a beleza biológica. Os oceanos se transformando em bacias de ácido diluído. Bem acima do horizonte, se aproximando velozmente, o tsunami urinário dos idosos em números cada vez maiores, cancerosos e dementes, exigindo cuidados. E em breve, devido à transição demográfica, o oposto, as populações em declínio catastrófico. A liberdade de expressão suprimida, a democracia liberal não mais o porto de destino, robôs roubando empregos, os direitos civis em combate feroz com a segurança, o socialismo em desgraça, o capitalismo corrompido, destrutivo e também em desgraça, nenhuma alternativa à vista.
Em conclusão, ela disse, esses desastres são obra das nossas naturezas duplas. Inteligentes e infantis. Construímos um mundo complicado e perigoso demais para poder ser administrado com o temperamento aguerrido que temos. Em meio à desesperança, muitos veem saída no sobrenatural. Estamos no crepúsculo da segunda Idade da Razão. Éramos maravilhosos e agora estamos condenados."

domingo, 3 de novembro de 2019

As alegorias do livro "A Revolução dos Bichos" de George Orwell

Não há dúvida de que a “Revolução dos Bichos”, publicado em 1945, é uma alegoria[1] ao regime comunista soviético, em especial do regime de Stálin. Aparentemente Orwell desejava fazer uma crítica às ditaturas de um modo geral e as suas técnicas de manipulação, mas acabou por referenciar por demais o regime soviético, permitindo essa interpretação mais restritiva. Tal fato foi reconhecido pelo próprio autor[2]:

“Se a fábula se dirigisse a ditadores e ditaduras em geral, então a publicação não teria problema, mas ela segue, como vejo agora, de forma tão completa a ascensão dos soviéticos russos e seus dois ditadores que só pode se aplicar à Rússia, com a exclusão de outras ditaduras”.

A influência de Jack London na vida e obra de George Orwell

George Orwell era um idealista, muito engajado nas questões de sua época. Inspirado na obra e vida de Jack London, para melhor entender o mundo de seu tempo, escolheu viver nas ruas de Londres como um mendigo, forçou sua própria prisão, trabalhou como lavador de pratos em Paris e foi voluntário na Guerra Civil espanhola, pelo exército republicano. Pagou um preço alto por essas experiências, ficando gravemente doente e tendo sequelas devido a um tiro, morrendo cedo, de tuberculose.

quinta-feira, 8 de agosto de 2019

O Amor Segundo Ficino

O pensamento de Ficino é totalmente subordinado aos dogmas católicos. Ele procurou fazer de em sua obra uma composição do pensamento de Platão com a fé cristã. Segundo Kristeller:

"Ficino revisou intencionalmente o esquema platônico, em parte para fazê-lo mais simétrico, em parte para dar à alma humana um lugar privilegiado em seu centro, dando assim uma espécie de sanção metafísica à doutrina de dignidade do homem, que herdou cie seus predecessores humanistas. A alma é verdadeiramente o fim de todas as coisas criadas por Deus. É a intermediária entre os seres mais altos e os mais baixos, compartilhando alguns de seus atributos com os primeiros e outros com os últimos." [1]

segunda-feira, 5 de agosto de 2019

A Visão do Amor em "Fedro" de Platão

Nesta obra Platão desenvolve as idéias sobre o Amor apresentadas no Banquete. Uma importante noção nos é apresentada sobre o delírio. Segundo Sócrates há dois tipos de delírio, um que nasce da modéstia e outro do estado divino que nos leva além das regras habituais. O delírio do Amor é do último tipo, sendo assim divino. O delírio divino é de quatro espécies: um é o sopro profético de Apoio, outro a inspiração mística de Dionísio; o terceiro, o delírio poético inspirado pelas Musas, e finalmente, a quarta espécie de delírio era devida à influência de Afrodite e de Eros. 

domingo, 4 de agosto de 2019

A Visão do Amor em "O Banquete" de Platão

A visão platônica do Amor nos foi apresentada principalmente em duas de suas obras, a saber "O Banquete" e "Fedro". A seguir vamos discutir a composição do Banquete e as suas principais idéias Posteriormente, veja aqui. as ideias apresentadas em "Fedro".

"O Banquete" se destaca, entre as obras de Platão, por apresentar uma forma de composição inusitada, uma seqüência de discursos proferidos pelos membros de um banquete. Um dos participantes do banquete, inspirado em um pedido de Fedro, propõe que cada um dos membros faça um discurso de louvor ao Amor. A sucessão dos discursos tem o mérito de expor várias teorias sobre a origem e natureza do amor, até o discurso final de Sócrates, este sim feito na forma de Diálogo, tradicional em Platão. A sucessão de discursos tem uma importância para o todo da obra, já que o discurso de Sócrates é como uma resposta aos discursos anteriores, apontando para a verdadeira definição do que é o Amor. 

O Manifesto Comunista e as Ideias Literárias do Século XIX


Manifesto Comunista insere-se no contexto histórico da ascensão da burguesia e da queda do Ancien Régime do século XIX, que viria dar origem ao Capitalismo e ao modelo social que predomina até hoje. Esta mudança levou à uma transformação que repercutiu em todas os campos, inclusive o literário. O novo modelo social, político e econômico que se formou levou ao surgimento de novas temáticas e estilos que iriam caracterizar o romance moderno, com o abandono do modelo literário clássico característico do Ancien Régime. As novas correntes literárias do Romantismo e Realismo foram resultados deste novo modelo que se impunha, modelo este que o Manifesto Comunista soube retratar de maneira extremamente lúcida.

Manifesto por um lado influenciou ideologicamente a geração de escritores que se formava e que iria atender ao apelo do manifesto. Deu surgimento a uma crítica literária que se fundamentou na visão de luta de classes por ele apresentada. Mas principalmente, mesmo para aqueles que não compartilhavam de suas teses, contribuiu enormemente para a compreensão do momento histórico e é um documento precioso para o entendimento das motivações literárias do século XIX.