"Aqui onde me encontro confinado tornei-me um bom conhecedor dos sonhos coletivos. Quem sabe o que é real? Não tenho condições de reunir eu mesmo as provas. Cada proposição é contestada ou anulada por alguma outra. Como todas as pessoas, vou escolher o que eu quero, o que for melhor pra mim."
Enclausurado, Ian McEwan.
O livro "Enclausurado" de Ian McEwan conta a história de um bebê que do útero toma conhecimento do mundo e reflete sobre a realidade que o espera (ou não, porque sua mãe planeja um aborto). A seguir um brilhante trecho dessa reflexão:
"O pessimismo é fácil demais, até mesmo delicioso, o emblema e enfeite dos intelectuais em toda parte. Exime as classes pensantes de buscar soluções. Nos excitamos com pensamentos sombrios em peças teatrais, poemas, romances e filmes. E agora nas análises de especialistas. Por que confiar nesse relato, quando a humanidade nunca foi tão rica, tão saudável, tão longeva? Quando mais do que nunca há menos mortes em guerras e em partos, quando mais do que nunca a ciência disponibiliza a todos mais conhecimento e mais verdade? Quando a cada dia se vê mais simpatia e carinho por crianças, animais, religiões alternativas, estrangeiros desconhecidos e distantes? Quando centenas de milhões de seres humanos foram retirados da subsistência miserável? Quando no Ocidente até mesmo os moderadamente pobres, envoltos em música, se reclinam em bancos ao deslizarem por estradas macias a uma velocidade quatro vezes maior que a de um cavalo a galope? Quando a varíola, a poliomielite, a cólera, o sarampo, as altas taxas de mortalidade infantil, o analfabetismo, as execuções públicas e a tortura rotineira praticada pelo Estado foram banidos de tantos países? Não faz muito tempo essas pragas estavam por toda parte. Quando os painéis solares, as usinas eólicas, a energia nuclear e invenções ainda desconhecidas nos livrarão dos males do dióxido de carbono, e culturas geneticamente modificadas nos salvarão dos desastres causados por fertilizantes químicos e impedirão que os mais pobres morram de fome? Quando a migração para as cidades devolverá grandes extensões de terra a seu estado virgem, reduzirá o crescimento demográfico e libertará as mulheres de patriarcas ignorantes do interior? Que dizer dos milagres cotidianos que fariam o imperador César Augusto invejar um trabalhador braçal: tratamento dentário sem dor, luz elétrica, contato instantâneo com as pessoas que amamos, com a melhor música que o mundo conheceu, com a gastronomia de dezenas de culturas? Estamos cercados de privilégios e delícias, assim como de queixas, e os que ainda não desfrutam de tudo isso em breve desfrutarão. Quanto aos russos, o mesmo se disse da Espanha dos Reis Católicos. Esperamos os exércitos deles em nossas praias. Como a maioria das coisas, isso não aconteceu. A questão foi resolvida por alguns navios incendiários e por uma providencial tempestade que empurrou a esquadra deles para a ponta da Escócia. Sempre vamos nos preocupar com o estado das coisas — é a contrapartida do espinhoso dom da consciência."
"Através dos ossos de minha mãe dei com um pesadelo sob a forma de uma palestra formal. A situação do mundo. Uma especialista em relações internacionais, uma mulher sensata de voz grave, me informou que o mundo não vai bem. Analisou dois estados de espírito comuns: a autocomiseração e a agressividade. Cada qual uma escolha ruim para qualquer indivíduo. Combinadas, para grupos ou nações, uma mistura letal que ultimamente envenenou os russos na Ucrânia, como já havia acontecido com seus amigos, os sérvios, na parte deles do planeta. Fomos humilhados, então vamos provar quem somos. Agora que o Estado russo é o braço político do crime organizado, outra guerra na Europa está longe de ser inconcebível. Basta tirar o pó das divisões de blindados na fronteira sul da Lituânia, de onde podem alcançar as planícies ao norte da Alemanha. O mesmo veneno corrói os segmentos extremados do islamismo. A taça foi bebida até o fim, o mesmo brado se levanta: fomos humilhados, vamos nos vingar.
A palestrante mostrou uma visão sombria de nossa espécie, em que os psicopatas constituem uma fração permanente, uma constante humana. A luta armada, justa ou não, os atrai. Eles ajudam a transformar desavenças locais em conflitos mais amplos. Segundo ela, a Europa, em meio a uma crise
existencial, está irascível e fragilizada porque muitas variedades de nacionalismo autoindulgente estão provando dessa mesma poção saborosa. A confusão sobre valores, a incubação do bacilo do antissemitismo, os contingentes de imigrantes apodrecendo por falta do que fazer, enfurecidos e entediados. Em outros lugares, em toda parte, novas desigualdades de riqueza, os super-ricos uma raça de donos do mundo à parte. A engenhosidade demonstrada pelas nações para desenvolver armamentos novos e brilhantes, das corporações multinacionais para evitar impostos, dos bancos que se dizem honestos para se entupir de dinheiro. A China, grande demais para precisar de amigos ou de conselhos, testando cinicamente o litoral de seus vizinhos, construindo ilhas de areia tropical, preparando-se para a guerra que sabe vir por aí. Os países com maioria de muçulmanos sofrendo os males do puritanismo religioso, da repressão sexual, da imaginação sufocada. O Oriente Médio capaz de gerar uma guerra mundial. E o inimigo conveniente que são os Estados Unidos, mal e mal ainda a esperança do mundo, culpados de praticar torturas, impotentes diante de um texto sagrado concebido numa era em que se usavam perucas com pó branco, uma constituição tão impossível de ser questionada quanto o Alcorão. Sua população está nervosa, obesa, com medo, atormentada por uma raiva que não consegue exprimir, desprezando o governo, assassinando o sono com novas armas de mão. A África ainda não descobriu o truque da democracia — a transferência pacífica do poder. Seus filhos morrendo, milhares a cada semana, por falta de coisas simples — água limpa, mosquiteiros, remédios baratos. Unindo e nivelando toda a humanidade, os velhos e tediosos fatos da mudança climática, do desaparecimento das florestas, das criaturas e das calotas polares. A agricultura rentável e perniciosa destruindo a beleza biológica. Os oceanos se transformando em bacias de ácido diluído. Bem acima do horizonte, se aproximando velozmente, o tsunami urinário dos idosos em números cada vez maiores, cancerosos e dementes, exigindo cuidados. E em breve, devido à transição demográfica, o oposto, as populações em declínio catastrófico. A liberdade de expressão suprimida, a democracia liberal não mais o porto de destino, robôs roubando empregos, os direitos civis em combate feroz com a segurança, o socialismo em desgraça, o capitalismo corrompido, destrutivo e também em desgraça, nenhuma alternativa à vista.
Em conclusão, ela disse, esses desastres são obra das nossas naturezas duplas. Inteligentes e infantis. Construímos um mundo complicado e perigoso demais para poder ser administrado com o temperamento aguerrido que temos. Em meio à desesperança, muitos veem saída no sobrenatural. Estamos no crepúsculo da segunda Idade da Razão. Éramos maravilhosos e agora estamos condenados."