domingo, 3 de novembro de 2019

As alegorias do livro "A Revolução dos Bichos" de George Orwell

Não há dúvida de que a “Revolução dos Bichos”, publicado em 1945, é uma alegoria[1] ao regime comunista soviético, em especial do regime de Stálin. Aparentemente Orwell desejava fazer uma crítica às ditaturas de um modo geral e as suas técnicas de manipulação, mas acabou por referenciar por demais o regime soviético, permitindo essa interpretação mais restritiva. Tal fato foi reconhecido pelo próprio autor[2]:

“Se a fábula se dirigisse a ditadores e ditaduras em geral, então a publicação não teria problema, mas ela segue, como vejo agora, de forma tão completa a ascensão dos soviéticos russos e seus dois ditadores que só pode se aplicar à Rússia, com a exclusão de outras ditaduras”.

No livro as referências ao regime soviético são bem claras, de modo que podemos, como a crítica em geral, associar Napoleão ao ditador Stálin, Bola-de-neve a Trotsky e Major a Marx e Lenin. Entre os episódios que possibilitam essa interpretação podemos citar o sonho e as reflexões do Major/Marx, que criticam o fato do homem (capitalista) ser o senhor dos animais, apesar de ser única criatura que consome sem produzir, e preveem uma revolução em que os animais conquistarão a liberdade; o episódio de exposição da caveira/múmia do Major/Lenin; além da fuga de Bola-de-neve/Trotsky, perseguido pelos cachorros de Napoleão/Stálin.
Apesar dos episódios mencionados na obra serem muito ligados à história soviética, a similaridade do “modus operandi” das ditaduras faz com que a obra mantenha sua atualidade. No decorrer da história são muitos os exemplos de quedas de regimes despóticos substituídos por outros regimes igualmente despóticos, que pouco a pouco passam a reproduzir as mesmas atitudes que denunciavam nos regimes destituídos. Quaisquer organizações que se prolongam no tempo tendem, pouco a pouco, a privilegiar os interesses dos líderes em detrimento do interesse gerais, fato esse bem abordado pela chamada “Lei de Ferro das Oligarquias”, postulada por Robert Michels. Se tal fato é verdade mesmo para instituições democráticas, o que se dirá de instituições que já nascem autocráticas.
Alguns anos após a publicação de “A Revolução dos Bichos”, George Orwell publicou “1984”, sua obra prima, em que retoma as mesmas questões políticas abordadas na obra aqui analisada, mas através do gênero literário “distopia” (antiutopia). O romance, apesar de ainda referenciar o regime soviético, não se prende a episódios específicos da história soviética, de modo que pode ser vista, com mais propriedade, como uma crítica geral aos regimes totalitários e suas técnicas de manipulação.  Nesse romance Orwell desenvolve ideias que já aparecem de forma alegórica na fábula sobre o “Solar dos Bichos”, pela boca do personagem Garganta. Em “1984” temos um órgão ironicamente chamado de “Ministério da Verdade” que é responsável por reescrever os livros e jornais de acordo com os desejos presentes do regime. Daí a máxima famosa do livro “Quem controla o presente, controla o passado”. Na fábula de 1945 o personagem Garganta atua do mesmo modo, ainda que de modo mais primário, através da manipulação das estatísticas de produção da fazenda, da progressiva recontagem dos episódios da vitória dos animais sobre Jones e da autoria dos planos do moinho (nos quais a participação de Bola-de-neve é progressivamente “apagada” e substituída pela atuação de Napoleão), além da reescritura dos mandamentos na parede do celeiro.

Passemos agora a analisar e contextualizar mais especificamente os episódios do livro narrados entre os capítulos VI a X.
No livro a granja representaria a Rússia no período pré-guerra. Os animais após vencerem o domínio de Jones, que pode ser interpretado como o período de governo do czar Nicolau, decidiram viver em um ambiente de harmonia e igualdade idealizada por Marx. No início da história percebemos a presença marcante de um líder, o velho Major, idealizador da igualdade entre os animais, e responsável pelo discurso de repúdio a Jones, o opressor dos animais. O Major morre, mas deixa como legado o seu ideal de igualdade, bem como a necessidade de retirar Jones da granja para que esse sonho se torne possível. Esse personagem nos remete a Marx, idealizador do socialismo.
Permeiam todos esses capítulos a construção do moinho. Bola-de-neve, que sonha com uma sociedade justa entre os animais, e, o idealizador do moinho. A construção deste moinho iria trazer, conforme sua concepção, desenvolvimento para a granja, e, principalmente, a garantia de produção abundante e condições melhores de vida para todos daquela comunidade. A construção do moinho pode assim ser associada à construção do próprio ideal socialista, que somente seria atingido com o esforço de todos.  Antes contestado por Napoleão, a construção do moinho é prontamente adotada por seu regime, assim que Bola-de-neve é expulso. O modo de construção do moinho pode também representar a ideia de economia planificada adotada por Stalin, o “bem maior” em troca do qual se justificariam as dificuldades presentes em prol de um futuro melhor. Assim é plenamente justificável e desejável que todos trabalhem arduamente, talvez ainda mais e com menos alimento do que no antigo regime de Jones/Nicolau II.
Durante a história Napoleão, aos poucos, vai dominando, a partir do medo, a vida dos animais da granja bem como os seus anseios. Seu poder é assegurado pela presença dos cachorros, criados por Napoleão desde pequenos. Os cachorros representam a força, a agressividade, bem peculiar dos exércitos ditatoriais.
O sonho da construção do moinho estimula os animais ao trabalho, os quais se dedicam para que esse fique pronto o mais rápido possível. Napoleão determinou o trabalho em caráter voluntário, mas quem se recusasse era exemplarmente punido.  Com mão de ferro, Napoleão conduzia a vida da granja, e quando necessário até mesmo matava. Na União Soviética, Troksty foi afastado do governo, do Partido Comunista e expulso, assim como Bola-de-deve, que após a revolta contra Jones foi expulso por Napoleão. As coincidências não param por aí: assim como Napoleão usava do medo para governar, ameaçando cortar a ração e, até mesmo matar, a ditadura de Stalin não fez diferente. O seu governo foi muito cruel com seus opositores, que quase sempre eram mortos por suas ideias.
A construção do moinho fez com que fossem negligenciadas as tarefas de lavoura, levando os animais a passarem fome. Tal fato é uma provável referência[3] ao chamado Holodomor[4], expressão que significa “matar pela fome” em ucraniano, uma das consequências do processo de apropriação pelo Estado soviético das terras, a chamada coletivização da agricultura, pelo qual os camponeses, 82% da população soviética, foram forçados a entregar seus bens (terras e gados) para passarem a trabalhar nos campos coletivos (kolkhozes) ou estatais (sovkhozes), cuja produção era destinada ao Estado. Na obra de Orwell a tomada dos bens dos camponeses e suas revoltas parecem retratadas no episódio de tomada dos ovos, já prontos para serem chocados, das galinhas, com a morte daquelas que se revoltaram.
As negociatas de Napoleão para vender a madeira seca, com tratativas às escondidas tanto com o Sr. Pilkington como com o Sr. Frederick, podem ser associadas aos acordos pré-guerra da União Soviética com a Inglaterra, e, concomitantemente, com a Alemanha Nazista, nos bastidores. O acordo com a Inglaterra não foi finalizado, mas o “Tratado de Não Agressão Germano – Soviético” foi. No entanto, o acordo não foi respeitado por Hitler e a Alemanha atacou as posições soviéticas durante a 2ª Guerra Mundial. Na “Revolução dos Bichos” o Sr. Frederick não respeitou o acordo com Napoleão e invadiu a granja. A imprevidência de Stalin/Napoleão levou a uma enorme mortalidade para rechaçar a invasão[5].
Também interessante discorrer sobre a visão do “Direito” apresentada pelo livro.   Os diversos episódios de alteração dos mandamentos/leis pelo regime dos porcos, de modo a legitimar privilégios cada vez maiores, parece repercutir a ideia marxista do Direito (e do Estado) como uma manifestação dos interesses da elite de forma a controlar a população oprimida.




[1] Mais especificamente uma fábula, narrativa com personagens animais que agem como seres humanos, e que ilustra um preceito moral.
[2] Em seu ensaio a “A liberdade da imprensa”.
[3] Essa hipótese é reforçada pelos artigos de Orwell na época em que ele criticava a omissão dos jornalistas marxistas sobre a situação de fome na Ucrânia. Orwell, inclusive, abriu mão de honorários para permitir a tradução ucraniana de seus romances, conforme artigo da revista eletrônica “Ucrânia em África”, disponível em https://ucrania-mozambique.blogspot.com/2018/06/8-factos-que-voce-possivelmente-nao.html, acesso em 01/04/2019. 
[4] Holodomor. Wikipedia. Disponível em https://pt.wikipedia.org/wiki/Holodomor. Acesso em 24/03/2019.
[5] Estima-se o total de mortes dos soviéticos na segunda guerra em 24 milhões, cerca de 14% da população. Fonte: Mortos na Segunda Guerra Mundial. Wikipedia. Disponível em https://pt.wikipedia.org/wiki/Mortos_na_Segunda_Guerra_Mundial, acesso em 01/04/2019.

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